Ao lado do ator Maurício Mattar, Mestre de Cerimônia,
e da Presidente da LITERARTE, Izabelle Valladaares.
A mulher que sonhava em cortar os cabelos
(Conto selecionado ao Prêmio Luso-brasileiro Melhores Contistas 2013)
“Padim Padi
Ciço”, Antônio Conselheiro e Lampião eram personalidades afamadas, fossem pela
representatividade de força religiosa, carisma de líderes espirituais ou
reputação de cangaceiro sanguinolento. A verdade é que em qualquer das
vertentes, arregimentavam-se seguidores, defensores e ferrenhos opositores.
O
acima exposto serve apenas de ambientação do cenário aonde veio ao mundo Maria
Clarissa, nascida prematuramente aos sete meses de gestação.
Na madrugada em
que, sem aviso prévio, Clarissinha, ou, simplesmente, Sinha, resolveu não
esperar que se completassem os nove meses, era noite de lua cheia. Nasceria, de
ímpeto, naquela fase lunar, entre contrações repentinas.
O silêncio noturnal
acompanhava-se de certo ar fantasmagórico, entrecortado, de quando em quando, pelo
som rouco de rasga-mortalhas e por regougares de raposas à espreita de
galinheiros; tais ecos somaram-se, de repente, aos gritos de dor de uma
parturiente despreparada a dar à luz a filha esperada somente para dali a oito
semanas.
A parteira mais
próxima distava duas léguas. Quando esta chegou, buscada às pressas pelo pai,
montados em lombos de mulas, o bebezinho já se debatia e choramingava nos
braços da mãe. Era tão pixototinha, a ponto da roliça senhora não disfarçar o
espanto e, utilizando-se da experiência ao longo dos anos de profissão e com um
ceticismo visível no olhar, peculiar ao que a situação remetia, recomendar que
se apreçassem em batizá-la para que não morresse pagã. Ao passo em que fazia
tais advertências, sem utilizar-se de meias palavras, apressava-se ao recolhimento
dos restos do parto e assepsia do delgado corpinho da criancinha.
Foi nesse
momento que a menininha, pouco maior que a palma da mão do pai, fora entregue,
sob promessa, às graças de Stª Clara, primeira
Franciscana e fundadora
da segunda Ordem
Franciscana, a das
Clarissas. Dessa intervenção veio o nome escolhido.
Num
ato de amor à pequenina, imbuindo-se de muita fé na santa de devoção, a mãe
prometeu, se sobrevivesse, sua filhinha jamais teria os cabelos cortados.
Correu à boca miúda
pelas redondezas, que o rebento se deu avexadamente pelo fato de sua mãe não
ter realizado o desejo de comer rapadura com carne de caça.
Passado o susto
e seguidas as recomendações para um bom resguardo, especial atenção foi
dispensada a alimentação da lactante; nos primeiros dias, canjas e escaldados
de capão, frangos caipiras cevados pra esse fim, faziam-na lamber os beiços.
Dizem não haver melhor alimento que revigore mulher parida.
Maria Clarissa,
aos poucos, ganhou peso e cresceu saudável fazendo da sua mãe, cada vez mais
devota, muito grata a Deus e a Santa Clara, renovando, a cada aniversário, a
promessa feita.
O tempo passou, a
menina tornou-se uma linda moça e ficou conhecida em todo o sertão como a
“Menina de Stª Clara” e, mais tarde, a “Moça dos cabelos de trança”. Os fios se
alongaram tanto, que pra facilitar-lhe a vida, mantinha-os em tranças enrodilhadas
à cintura. Só não ganhou o apelido de “Rapunzel dos Sertões” porquanto o conto
de fadas, dos Irmãos Grimm, não chegara
àquelas terras. Às vezes, fazia das tranças, uma acolchoada rodilha a
proteger-lhe a cabeça enquanto equilibrava na moleira as latas d’água que
buscava diariamente na cacimba.
Com o curso natural
da vida, Sinha se casou e teve filhos. Tempos depois seus pais faleceram, mas a
promessa manteve-se de pé, embora, às vezes, a incomodasse; havia dias em que
acordava com a cabeleira totalmente desgrenhada, pra desembaraçá-la, horas eram
despendidas.
Anos
mais tarde a família mudou-se pra pequena cidade da qual seu povoado era
distrito, em lá chegando, a vontade de ter os cabelos cortados só aumentava, mas
como quebrar a promessa? Não incorreria em pecado? Uma vez feita pela
sobrevivência, não seria punida com a morte?
Certa
ocasião, um caixeiro viajante, amigo do seu marido, de passagem pela cidade,
hospedara-se em sua casa, deixando cair em suas mãos, trazida das andanças
pelos maiores centros, uma revista de moda, dessas com fotos de mulheres de cabelos
bem penteados, estopim pra que sua vontade mudasse pra desejo ardente, um sonho
a ser realizado, a ponto de externar em palavras como queria o corte; ouvindo
do marido, pra sua frustração, a expressão proferida em tom autoritário: – muié minha num corta cabelo, inda mai de
promessa feita, pra isso acuntecer, só pu cima do meu cadávi.
Afoita
ao desejo de se livrar do mafuá de fios e tranças, resolveu apelar à própria Stª
Clara, se necessário, pagaria outra promessa, mas que lhe revelasse um sinal,
através do qual pudesse se livrar da promessa de nunca cortar os cabelos sem
consequências danosas a sua vida e fé.
Passados
poucos dias, o marido de Maria Clarissa sofre um acidente, atingido, na fronte,
por violento coice de jegue empacado, veio a falecer. Enquanto se “bebia o
morto”, compareceram ao velório parentes e amigos vindos de todo o sertão. A
pergunta que não calava era: onde está Maria Clarissa, por que não a vemos ao
lado do caixão?
Somente
após o sepultamento Clarissa reaparece ostentando novo visual, enquanto velavam
o corpo, viajara pra cidade vizinha, onde havia um salão de beleza para, enfim,
cortar os cabelos.